Dilma de Melo Silva foi atriz no Grupo Teatro da Cidade (GTC), de SAnto André, na década de 1970. É professora universitária na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. |
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Depoimento de DILMA DE MELO, 64 anos.
IMES – Universidade Municipal de São Caetano do Sul, 07 de julho de 2005.
Entrevistadores: Prof. Eli Estevão Goulart e Tiago Magnani.
Pergunta:
Comece falando sobre a sua infância já em São Bernardo do Campo.
Resposta:
Nasci no Estado de São Paulo, na cidade de Santa Cruz do Rio Pardo, e meus pais vieram para o ABC no final da década de 50. Terminei meu curso primário em Santo André. Depois minha mãe foi par São Bernardo, onde vivo até hoje.
Pergunta:
Em que ano vocês foram para São Bernardo?
Resposta:
Em 1958.
Pergunta:
Como era a região?
Resposta:
São Bernardo acabara de se separar de Santo André, era a chamada vila. A gente ia para a Vila de São Bernardo. Tinha uma característica de dependência, se é que se pode dizer isso. Santo André era o grande centro e São Bernardo ficava numa posição um pouco mais abaixo. Sair de Santo André e ir para São Bernardo não parecia ser uma coisa muito vantajosa, mas para nós foi porque, da Vila Assunção, onde nós morávamos, nós fomos para o centro de São Bernardo, na praça principal, onde hoje é a Lauro Gomes, onde mamãe ficou como vice-diretora da escola. Meu pai tinha um pequeno comércio na região e a gente viu essa região se desenvolver. Hoje é irreconhecível. Se você pegar fotos da Marechal Deodoro, da Igreja Matriz, do que veio a ser a Vera Cruz, era tudo completamente diferente do que é hoje, hoje é outra cidade.
Pergunta:
Fale um pouco do seu contato com a escola.
Resposta:
Toda a vida, porque mamãe sendo professora e vice-diretora da escola, havia um interesse muito grande pela escola. Na minha casa tinha Diário Oficial. Imagina o que é isso. Meu irmão, nove anos mais velho do que eu, era jornalista e trabalhava num pequeno jornal de São Bernardo. Havia um interesse muito grande pela cultura, pelo rádio. Havia sempre um estímulo muito grande. Isso me levou, aos 15 anos, a fazer teatro na igreja paroquial, que veio dar no Regina Paces. Era um grupo ligado à paróquia de São Bernardo, da Igreja Matriz. Não parecia assim, porque o teatro seria um local que acolheria uma série de interesses meus, que depois se concretizaram.
Pergunta:
O que havia de formas de lazer para os jovens do ABC?
Resposta:
Praticamente nada. Não havia um interesse de ter núcleos para alguma coisa. Aqui na região de Santo André existia, veio a ser criado o GTC, o Teatro de Alumínio, mas isso mais para o fim da década de 50, onde nós participávamos das montagens, mas uma atenção específica eu não creio que o Poder Público se interessasse. A nossa atividade de teatro em São Bernardo se deu ligada à paróquia, à igreja. Era o pessoal ligado a alguma organização religiosa católica, no caso, que acolhia os jovens.
Pergunta:
Você ia ao cinema?
Resposta:
Cinema sim, Cine Tamoio em Santo André, em São Bernardo tinha o Cine São Bernardo, mas não era alguma coisa muito importante para mim.
Pergunta:
Vamos falar sobre o Regina Paces. Quando foi a formação do grupo?
Resposta:
O Regina Paces vai surgir na década de 60, 1961, 1962, quando nós fizemos um espetáculo do Jorge Andrade, Pedreira das Almas, muito interessante, uma peça belíssima, com o coro da igreja. Essa foi uma vantagem grande, porque é uma peça difícil do Jorge Andrade, que é uma tragédia grega e pede esse coro. É uma peça que poucas vezes foi montada dada essa dificuldade. E o Antonino Assunção, que foi o nosso diretor, conseguiu que o coro da igreja fizesse parte. Havia uma participação muito grande desse grupo numeroso de pessoas. O espetáculo foi muito bem visto, teve grande sucesso e tivemos destaque nessa primeira montagem. Naquela ocasião a Comissão Estadual de Teatro favorecia muito e dava um apoio muito grande aos festivais de teatro amador. As regiões do Estado de São Paulo se articulavam muito em termos de apresentar os espetáculos de teatro amador. Então, o Regina Paces vai fazer parte de inúmeras peças que são montadas para a participação nos festivais. Tivemos de ir a Santos, a Campinas, onde eram as eliminatórias para ter uma final em um outro local. O primeiro espetáculo que a gente fez foi muito bom.
Pergunta:
Como foi o processo do Regina Paces? Quem entrou, como era conseguida a verba?
Resposta:
O Antonino Assunção. Nós tínhamos um grupo um pouco menor, mas incipiente, dentro da paróquia, como falei, mais ligado às atividades de jovens, a catequistas, a atrair as crianças. Eu me lembro de uma pequena pecinha que a gente montou para atrair a criançada para o catecismo. Foi uma comédia, uma brincadeira que se passava na sala de espera de um dentista, aquela criançada entrando e saindo, não querendo ser atendida, mandando o irmão no lugar. Existia um pequeno embrião de jovens interessados no teatro. E tinha, no caso, a liderança do Toninho, que gostava muito de teatro, eu também, outras pessoas de lá também tinham o interesse. E por que não montar? Tinha de se escolher uma peça, ver qual. O irmão do Toninho, que era daqui e faleceu há alguns anos, já tinha o Teatro de Alumínio, então a gente um pouco que se aproximou do Teatro de Alumínio, que já tinha experiência, para fazermos essa junção e escolhermos uma peça, a melhor, a mais estruturada que pudesse concorrer. Foi também nesse caso, como é o GTC, com o apoio da Prefeitura Municipal. O então Prefeito era Lauro Gomes, que, com um viés bem populista, acolhia essas iniciativas, achava tudo maravilhoso, disponibilizava transporte, achava que São Bernardo tinha de aparecer. Ajudou bastante até essa postura do Prefeito, incentivando as artes, o teatro.
Pergunta:
Qual era a sua função no Regina Paces?
Resposta:
Eu era atriz.
Pergunta:
E como foi a construção do Teatro de Alumínio?
Resposta:
Não sei. A construção física? Não sei.
Pergunta:
Quem fundou o Teatro? Foi o Chiarelli?
Resposta:
Com certeza. O irmão do Assunção também. Havia um grupo aqui que utilizava o teatro, mas não tenho essa informação. Talvez o Zé Armando. Como eu não estava aqui, eu não acompanhei o Teatro de Alumínio.
Pergunta:
E como você entrou na EAD?
Resposta:
Estava terminando o colegial, no Caetano de Campos, em São Paulo, e em um dos espetáculos que a gente fez, uma das pessoas da banca examinadora me chamou, falou que o grupo era bom e perguntou por que a gente não ia fazer EAD. O que é EAD? Nem sabia. É a Escola de Arte Dramática de São Paulo, explicou e me deu a orientação. A partir dessa conversa, era Berto Zener que fazia parte do júri, ele conversou conosco e naquele ano um grupo grande de jovens atores e atrizes da região prestou o vestibular, porque era um processo seletivo. A EAD funcionava onde hoje é a Pinacoteca do Estado, na Avenida Tiradentes, naquele prédio belíssimo, e era dirigida pelo professor Dr. Alfredo Mesquita. Eu prestei também, mas eu queria sociologia, ciências sociais e também fiz o vestibular de sociologia e acabei fazendo os dois cursos juntos. Fazia sociologia à tarde, que era e é até hoje um curso vespertino na USP e a EAD à noite. Fiz os dois cursos em conjunto.
Pergunta:
Você morava em São Bernardo ainda?
Resposta:
Toda a vida. Ia e voltava de lá todo dia.
Pergunta:
Ia de ônibus?
Resposta:
Sim.
Pergunta:
Você falou que seu irmão mais velho trabalhava num jornal de São Bernardo. Que jornal era?
Resposta:
Era um jornal que provavelmente não existe mais. Não lembro o nome. Mas logo em seguida ele foi trabalhar no A Última Hora, depois foi para a Folha e terminou na regional do ABC, Dimas Espírito Santo, como ele assinava. Tem até referências, o pessoal da Metodista já fez trabalhos sobre ele, como um jornalista conhecido original. Ele começa o interesse lá em São Bernardo, mas ele trabalhou muito tempo como jornalista policial.
Pergunta:
Ele fez jornalismo?
Resposta:
Não. Ele fez direito, o que é muito comum.
Pergunta:
Você ouvia rádio?
Resposta:
Muito.
Pergunta:
Que programas de rádio, quais emissoras?
Resposta:
Lá em São Bernardo nós tínhamos uma rádio que funcionava na Marechal Deodoro, Rádio Independência. Eu até trabalhei como locutora nessa rádio, fazia um programa, também ligado à igreja. Em casa se ouvia muito. Minha mãe sempre estava com o rádio ligado, no noticiário, gostava de ouvir tudo, de manhã Rádio Bandeirantes, ou Hora do Brasil. Hoje a gente foge dessas coisas, mas naquela época era importante.
Pergunta:
Como era o programa que você apresentava?
Resposta:
Era alguma coisa ligada à igreja, tipo hora da ave-maria, ou da oração. Nós tínhamos de organizar tudo, fazer a produção, buscar os textos, a locução, escolher as músicas. Foi um aprendizado muito interessante. E para mim era muito cômodo porque era do outro lado da rua. Eu morava na Marechal, atravessava a rua e a rádio era ali. Depois ela mudou-se para a Santa Filomena, de onde desapareceu.
Pergunta:
Que lembranças você tem do bairro onde você morava?
Resposta:
Morava no centro, onde é a Igreja Matriz. Ficava a uma quadra da Praça da Matriz, depois a gente mudou para a Santa Filomena, depois Américo Brasiliense e hoje na Alberto de Campos, onde moro até hoje. Três locais de São Bernardo, sempre no centro, com aquele vínculo da Praça da Matriz e Praça Lauro Gomes.
Pergunta:
Vamos voltar para a EAD. Além da EAD e do curso de sociologia, dava tempo de trabalhar?
Resposta:
Quando estava fazendo os cursos, na EAD eram três anos e a Faculdade de Ciências Sociais quatro. No último ano de ciências sociais eu dava aula de história, de geografia, essas coisas que aparecem.
Pergunta:
No ABC?
Resposta:
Não, em São Paulo, porque era mais fácil para me deslocar. Dava aula à noite, dei aula no Itaim, no Vocacional do Brooklin, onde dei aula de teatro. O Jorge Andrade tinha organizado o curso de teatro lá e quando ele sai do Vocacional, para vir ser o Secretário de Cultura de São Bernardo, não sei se vocês sabiam disso, e inclusive tem um plano de cultura para São Bernardo que ele desenvolveu. Quem estudou isso foi o Mário Bolognese, que fez doutorado comigo, foi Diretor de Cultura de São Bernardo, mas em 1989 até 1992, na primeira gestão do PT em São Bernardo. Ele tinha diretrizes muito interessantes, criando aquilo que eles chamam de CRECs, Conjuntos Recreativos, Esportivos e Culturais. Acho que eles criaram sete ou oito grandes espaços, equipamentos culturais, que existem até hoje lá no Baeta. Não sei se vocês conhecem onde é a Secretaria de Cultura de São Bernardo, é um desses CRECs. O Elis Regina, no Bairro Assunção, na Paulicéia. São alguns locais que foram construídos por iniciativa dele, também num pensamento curioso de descentralizar e não ficar só no centro, ao lado da Prefeitura. Por que falei isso? Quando ele sai, tinha uma colega que trabalhava lá, Iara Golds, que me falou que ele estava saindo e como eu tinha sociologia, ciências sociais e teatro, ela perguntou se eu não queria auxiliar. Foi uma experiência muito interessante o Vocacional, onde fiquei um ano e meio. Aí comecei a fazer alguns cursos de pós-graduação, isso já em 1968. Então, conciliei dessa forma.
Pergunta:
E como era o curso na EAD?
Resposta:
Era o melhor possível. Foi uma experiência impressionante. O Dr. Alfredo tinha uma visão do teatro como um trabalho, com disciplina. Você tem horário para chegar, tem de cumprir as suas leituras, fazer exercícios. Ele era muito rigoroso, acompanhava muito de perto. Sabe o diretor da escola que vai e vê se os alunos estão na sala, acompanha. Ele tinha uma secretária muito eficiente, uma biblioteca muito boa que depois foi para ECA quando a EAD é absorvida pela USP, em 1966. Nós ganhamos uma biblioteca excelente. As montagens que a EAD fez foram ótimas. A idéia dele era formar atores para o TBC, Teatro Brasileiro de Comédia, e que precisava ter atores bons, com uma boa formação cultural. Por exemplo, nós tínhamos três anos de história do teatro, com o Paulo Mendonça, um dos sobrinhos dele, que era também crítico da Folha de São Paulo. Ele era o nosso professor de história do teatro. Ele acreditava e isso é uma verdade, que fazer teatro não é só ir ao palco e interpretar. Você tem de ter uma bagagem cultural, conhecer literatura, estar atualizado com as coisas. Isso foi muito bom, deu um substrato, uma densidade de conhecimento para os alunos muito grande. É claro que o vínculo dele era mais com teatro clássico. As montagens, praticamente todas que nós fizemos durante os três anos, foram espetáculos muito teatrão, teatro de peso. Só me lembro de duas montagens, a comédia Júnior Caiu num Mistério, e uma peça em que só fiz figuração, A Falecida, do Nelson Rodrigues. Era o pessoal do terceiro ano e como estava no primeiro, eles escalonavam. A montagem daquele ano era com um diretor de fora, para os alunos do terceiro ano e os outros alunos entravam como personagens de segundo plano ou como figuração. Mas foi muito interessante. Acho que são dois momentos, do que conheço, do que aprendi, do interesse que me foi despertado para a arte, para o teatro em si, foi esse primeiro com a EAD, nesses três anos intensos de estudo. Era de segunda a segunda, porque a gente ensaiava de sábado e domingo. Conforme fosse o espetáculo, ele levava no final de semana para a chácara dele em Vinhedo e lá ia todo mundo para ensaiar e ficar o dia todo trabalhando com ele. Esse seria um primeiro. O segundo foi a experiência aqui no ABC com o GTC, com Heleni Guariba, com Flávio Peres, Ulisses, que foi uma outra escola, que completava essa formação.
Pergunta:
E como era o seu relacionamento com a família? Sua família foi contra você entrar no teatro?
Resposta:
Não. A minha mãe, se estivesse viva hoje, seria uma líder feminista, provavelmente estaria com as bandeiras das reivindicações. Ela sempre foi uma pessoa, eu acho, adiantada para o seu tempo. Para vocês terem uma idéia, ela fugiu para se casar com meu pai. Papai era neto de libaneses, caixeiro-viajante, e eles fugiram. Ela estava noiva de um primo e vocês imaginam o que isso deve ter causado na família. E o fato de ela ter assumido um casamento com uma pessoa de fora do âmbito daquela família grande, demonstrava uma personalidade, características bastante avançadas. E tinha esse meu irmão também ligado ao jornal, à mídia, e isso também é um fator positivo. Eles não puseram nenhum obstáculo, pelo contrário, foi algo bem-vindo na casa.
Pergunta:
Você chegou a trabalhar na Fundação das Artes?
Resposta:
Trabalhei um ano. Dei interpretação e dirigi alguns espetáculos para os alunos.
Pergunta:
Como eram os espetáculos? Quem era o diretor?
Resposta:
Era o Milton Vaz. Ele era o diretor, tinha a parte de música e teatro, mas acho que também estava começando artes plásticas, mas nós não tínhamos muito contato. A Gabriela Rabelo também dava aula. Eles tinham fundado um grupo de alunos, a partir das montagens do Francisco, eles fizeram um grupo semiprofissional, se é que a gente pode chamar assim, que montava os espetáculos e levava nas escolas. Era um trabalho muito interessante em São Caetano, ligado às escolas. Eu me lembro de ter montado um auto medieval. Era diretamente ligado ao interesse de um professor de português, com trechos de poesia. O grupo oferecia esse espetáculo para as escolas, também numa linha interessante de formação de público. Isso era muito bem-vindo na escola e deu bastante resultado.
Pergunta:
Como se chamava essa peça?
Resposta:
Era Sara, baseada numa poesia do Manuel Bandeira.
Pergunta:
Quantas peças foram feitas?
Resposta:
Montamos várias peças. Algumas eram dessa forma como te falei, eram quase criações do grupo. Eram espetáculos bem direcionados para o ensino médio de hoje, para português ou história. Algum espetáculo que tivesse a ver com a história do Brasil, facilitando, o que chamaríamos de teatro de educação. Você utiliza a linguagem teatral como uma somatória, como uma alavanca para ensino de conteúdos, montando de forma tal que o espetáculo pudesse ser feito dentro de uma sala, no pátio da escola. Era bem flexível a montagem.
Pergunta:
Em que ano foi?
Resposta:
Foi quase que concomitante.
Pergunta:
(Inaudível)
Resposta:
O meu vínculo com eles não foi muito grande. O GTC começou a absorver demais e a gente já não tinha tempo para a Fundação.
Pergunta:
E você saiu da EAD e entrou no GTC?
Resposta:
O GTC sai de dentro da EAD. A Heleni Guariba era professora dentro da EAD, foi professora de estética. Ela vem da França, tinha feito doutorado na França, já tinha trabalhado com Roger Flanchon, com o Teatro Lavigne, que é um subúrbio de Paris, alguma coisa em Lyon, dentro de um plano de descentralização e popularização do teatro. Era uma política do Governo Francês descentralizar a produção cultural de Paris, levando para o interior da França, fazendo também a popularização do teatro. Quando a Heleni vem e tem contato com esse grupo grande, porque nós éramos uns dez ou doze alunos, que estavam no primeiro ou no segundo ou no terceiro ano da EAD, e éramos aficionados por Adoniran Barbosa, porque era o Trem das Onze, a gente não podia perder o trem das onze, porque era o último subúrbio. Era só atravessar a rua, porque nós estávamos na Pinacoteca e era só pegar o trem na Estação da Luz, descia em Santo André e pegava o ônibus para São Bernardo. Ali dentro, nas aulas dela, com o contrato grande dela como Ulisses, é que foi amadurecendo a idéia de se fazer esse grupo profissional aqui na região do ABC. Já existia o Teatro de Alumínio, a gente já tinha iniciativas interessantes de teatro, não só o Teatro de Alumínio, mas também a Fundação das Artes, nos grupos amadores da região, que eram bastante conhecidos.
Pergunta:
Como começou o GTC?
Resposta:
Começou com as reuniões com a Heleni, com o Ulisses, Flávio Peres, a escolha do espetáculo, que peça ia ser montada, os contatos da Sônia Guedes, do Petrin, da Analy, que moravam aqui em Santo André, com a Prefeitura, para a gente saber se efetivamente íamos ter recursos, porque alunos recém-formados, como você vai ousar essa aventura de uma montagem de um espetáculo?
Pergunta:
Em que ano?
Resposta:
Foi em 1968. Aqui nós temos as datas todas da fundação do grupo oficialmente, como uma sociedade civil sem fins lucrativos. Eu me formei na EAD em 1967 e foi no ano seguinte.
Pergunta:
Havia projetos de estrutura?
Resposta:
Nós temos vários projetos, porque a aprovação foi oficial, houve um decreto do Prefeito, o Dr. Muller, que era o Secretário. Havia uma dotação orçamentária para a montagem dos espetáculos, cenários, figurinos, porque era uma peça de época, e as roupas todas, foi uma montagem cara, custosa, e também para os salários, entre aspas, porque nós éramos remunerados. Havia uma dotação mensal para o diretor, os assistentes. Eu era assistente de direção da Heleni e também fazia uma das camponesas, numa figuração. O espetáculo foi muito interessante, a montagem. Esse trabalho de nós conseguirmos convencer a Prefeitura, o grupo conseguiu que a Prefeitura definisse uma política cultural para a região, de formação de público, de descentralização em relação a São Paulo, de aparecer o que nós chamávamos de teatro popular na região. No folder que nós temos aqui aparece a frase Teatro Popular de Santo André. A montagem tinha essa pretensão. Os objetivos eram que ela realmente fosse agradável, que ela tivesse um desfrute estético, mas que também trouxesse uma reflexão. A direção da equipe, o Flávio Peres insistia muito com o Ulisses e com a Heleni, que o palco é um palco brechtiano, um local de discussões, de reflexão. Você não vai ali só para passar uma hora e meia e depois ir para casa. É um ponto de debate de idéias. A própria montagem teve essas características, de mostrar visualmente, o cenário propiciava isso. As classes sociais do século XVII na França como estavam? Como estariam hoje? A gente faria uma analogia posterior, porque após o espetáculo nós tínhamos debates com o público, tínhamos conversas com os professores. Existia uma equipe, não sei se o Zé Armando ou a Inajá contaram isso, mas nós tínhamos o que chamávamos de monitores, o apoio, que iam às escolas e preparavam o público para o espetáculo. Nós tivemos um problema de a peça ser para maiores de 18 anos e nós perdemos uma fatia grande de adolescentes que poderiam ter visto e não viram, por causa da proibição. Como o assunto central, para eles, era a traição, isso não era muito bem visto pela moral.
Pergunta:
Vocês tiveram problemas de censura?
Resposta:
Ninguém ia pedir identidade para a pessoa, quando se falava na escola que a peça tinha censura de 18 anos, acabavam vindo alunos apenas dos últimos anos. Mas essa equipe de monitores, o pessoal que dava a base, juntamente com os que eram do elenco e a direção, o grupo que encabeçava o GTC, acho que são muito claros os objetivos. As ações eram muito coerentes porque sabíamos o que queríamos. Nós tínhamos essa idéia de que era um grupo de atores e atrizes, futuros diretores, cenógrafos, iluminadores, pessoas que seguiriam seu rumo, que gostariam de trabalhar no ABC. Nesse início a nossa intenção era criar uma estrutura de produção teatral local, com recursos do Poder Público. Por que não? Acho que é dever do Estado apoiar a cultura, e acho até hoje. Nós temos o direito de usufruir a cultura. Para isso pagamos nossos impostos, então as dotações deveriam vir do Poder Público e a contrapartida é você formar público, você traz pessoas, está formando novos atores, aumentando o espectro de um grupo que não era só fazer a peça, terminar e acabou. Não, havia uma preocupação de continuidade. Nós tínhamos, vocês estavam vendo na documentação, um questionário que se passava ao final da apresentação para ver como tinha sido a reação, se tinham entendido as nossas intenções, se conversava muito, as discussões, o aprofundamento das idéias era uma preocupação para todos.
Pergunta:
E como era o contato com a Heleni Guariba, como era a figura dela e como foi a recepção do desaparecimento dela?
Resposta:
O título do trabalho reflete muito essa situação. Era Drama Social do Teatro no Brasil, do final da década de 60 ao início da década de 70. Nós estávamos em plena vigência do AI-5, com problemas de censura, restrições de um trabalho mais politizado. A Heleni dá o pontapé inicial, o início à montagem do grupo, a estruturação do grupo, a montagem do espetáculo. Ela ganha o prêmio de revelação de direção. Faz uma temporada em São Paulo, uma coisa absolutamente inédita para um grupo de Santo André, fazendo uma carreira normal de teatro, com boa crítica e boa aceitação de público. Esse ideal que ela deixou passar, que ela propunha e foi aceito pelo grupo, é claro que formou dentro de nós uma consciência do trabalho do ator e atriz como um trabalho intelectual. Nós somos trabalhadores da cultura. Quando a gente fala isso hoje, sou um trabalhador da cultura, trabalho como numa fábrica, talvez até tenha demorado até a gente entender a posição dela, da responsabilidade desse trabalhador, de como a gente deve atuar. Se nós estamos vivenciando um período grave, cinzento, horrível, da nossa história, como era o caso, nós também temos de nos articular bem. A dificuldade em escolhermos os textos posteriores, a continuidade, que peças? Não podia ser qualquer peça. Você tinha de escolher bem o segundo espetáculo, o terceiro. E a intenção do grupo não era perpetuar os diretores, mas era contratar diretores que pudessem trazer a sua experiência, como foi o caso de A Guerra do Caça Cavalo, uma peça do Celso Nunes. Quando entrei na EAD ele já estava no terceiro ano, já tinha ido para o exterior, para a França, e volta com idéias muito boas, o espetáculo foi muito bonito, e a Heleni se conecta com o chamado Núcleo 2 do Arena, com o Boal, que tinha um vínculo já muito ligado com o ideário do teatro de ir contra a opressão, do teatro oprimido que o Boal começa a montar ali. Ele vai começar a fazer as montagens ligadas a um desvelamento da história do Brasil, O Arena Conta Zumbi, O Arena Conta Tiradentes. Eles tinham o Núcleo 1 e 2, com proposição de formação de atores. E a Heleni vai atuar com ele. Em 1972 ela desaparece e eu já não estava mais no grupo, mas nós acompanhamos a detenção dela. Ela desapareceu e não se sabe, são mil suposições do que teria acontecido. É claro que afetou muito no sentido de você saber os riscos que você estava correndo. Não era uma brincadeira. Você estava atuando, criando uma proposição de uma arte, de um teatro contrário aos interesses da classe dominante. Até onde você vai agir? Houve várias peças que foram censuradas, que eles não conseguiram montar. Mas esse contexto social pesado vai desgastando a energia do grupo. Muitas pessoas foram saindo, deixando o grupo, tendo se destacado como atores ou como atrizes, são convidados para trabalhar em São Paulo e há uma entrada e saída muito grande de atores. Muita gente passou, entrou e saiu de cena. Essa perda dela, ficou um buraco, ficou um vazio de uma liderança firme, política mesmo, que ela soube muito bem construir e que deixou marcas profundas em todos nós. Isso é impossível de você negar. Se vocês virem a tese do Timochenco, vão ver que ele enfatiza isso, põe em destaque o papel de liderança dela e a perda da Heleni foi bem forte.
Pergunta:
(Inaudível)
Resposta:
Influencia no sentido de que perde um pouco o perfil inicial. Eu não acompanhei, estou supondo. Você vai mudando muito. Quem segura aquela espinha dorsal, aquela proporção de ser um grupo teatral profissional, mas ser diferenciado de outro, acabou por ser um grupo igual ao TBC ou a um outro qualquer. Só com a característica de estar na região do ABC. Perdeu aquela conotação primeira, aquele objetivo primeiro que era muito mais ligado a uma política cultural mesmo, com pontos bem definidos e bem entendidos. Isso prejudicou.
Pergunta:
Como você teve o interesse de ser atriz?
Resposta:
Eu entendo o teatro como um instrumento político de transformação social. Nós pretendíamos que o público compreendesse melhor o seu momento histórico. O teatro brasileiro tem grandes idéias, é o local onde você debate as proposições mais importantes do ser humano, o ser no mundo, o que estou fazendo aqui. O sentido da polis, da política, da cidadania, não partidária. Não estou pensando política no sentido de que nós vamos falar mal da Arena ou do MDB, mas era de espectador que pensasse como um cidadão de um país que estava num momento difícil, numa crise política muito séria. Nós temos responsabilidades, enquanto grupo teatral, de mostrar essa realidade. Então, o palco é uma escola, um local de conhecimento. Há toda uma postura por trás disso, do pensamento. A Heleni, o Ulisses, o Flávio Peres, se vocês forem ver em que fonte eles beberam, foi no teatro brechtiano. As proposições em que eles estavam fundamentando a montagem desse primeiro espetáculo tinham esse objetivo. Para mim não há dúvidas que era um teatro de instrumentação política.
Pergunta:
Vocês viam as montagens dos outros grupos, como Arena?
Resposta:
Claro. Todas as montagens do Arena naquela época nós íamos assistir. Também aos ensaios. A gente transitava muito lá. Nós éramos como uma extensão. Era de combate mesmo. Acredito que dali, o Isaías Almada mesmo, que era do Arena, vai atuar politicamente, Marília Pêra também, uma série de pessoas que foram presas, estiveram no presídio da Rua Tiradentes. O papel do Arena nesse momento foi altamente significativo de oposição ao governo militar.
Pergunta:
(Inaudível)
Resposta:
Sim, porque havia uma conexão. Quase eram as mesmas pessoas. Não vou dizer isso porque Boal não esteve aqui, mas a Heleni estava aqui e lá. Nós estávamos lá. Havia sim um condutor, um conjunto de ideais.
Pergunta:
Nós pedimos para a pessoa deixar alguma mensagem importante para finalizar.
Resposta:
Eu me considero munícipe de São Bernardo, embora não tenha nascido em São Bernardo. Quando perguntam de onde eu sou, eu falo que sou do ABC. Eu acho que o fato de nós morarmos nessa região é muito significativo para o resto do país, que já liderou movimentos significativos e espero que continue liderando, é um fato muito positivo. Eu acho que a gente está do lado certo da história. Em que pese uma série de acontecimentos que estão aí, e nem todas as batatas que estão dentro daquele saco estão estragadas. É melhor tirar essas logo, para não contaminar tudo. Eu acho que é muito importante você pertencer a uma região periférica, que está no circuito de circulação de caminhos. Gosto muito do que o professor Luiz Roberto fala, que a nossa região, São Bernardo principalmente, é uma região de travessia, de passagem, de intercomunicações. São Paulo com Santos, passando pelo ABC, as travessias que você tem de fazer em direção a Dutra. É um circuito. E isso vai dar ao morador daqui uma coisa de aberturas maiores, de liberalidade, uma postura muito mais receptiva, aberta para mudanças, de acolhimento do outro, uma região de migrantes. Você vai às grandes favelas de São Bernardo e você encontra o Brasil. Vai ao Areião, ao Montanhão, onde a gente trabalhou muito, e você encontra desde mineiros, paranaenses, com moda de viola, até os sanfoneiros, o pessoal da Paraíba, Piauí, passando por todo o Nordeste, Bahia. É uma cidade interessante nesse ponto de vista, ao lado de imigrantes italianos, principalmente, espanhóis, europeus que vieram no segundo momento da imigração, que são muito interessantes. Traz um traço muito característico para a cidade. E isso é muito enriquecedor.